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Wallace Stevens, a cuja poesia Williams deve muito, destacou e tornou famoso o aspecto “antipoético” de sua obra.7 Nisso há algo de verdadeiro. Mas a força para fazer poesia a partir de cinza e refugo não está na petição de princípio programática ou mesmo no parti pris moral. Williams não pretende de modo algum lidar com um conceito — aliás, rebaixado — do poético, para que assim possa negá-lo. O despojo é, em primeiro lugar, nada mais nada menos do que um fato empírico e o poeta o encara com aquela falta de prevenção, aquele “primeiro olhar”, que lhe são próprios. Sua agudeza de visão é desconcertante. Em toda e qualquer circunstância ele dá preferência ao detalhe em vez da metáfora. Seus recortes são sempre feitos com mão certeira. Muito de sua técnica remonta à pintura, que aliás ele desde sempre tratou com muita atenção. Seus melhores poemas lembram às vezes a arte gráfica asiática, especialmente por sua economia, a arte de poupar.
A crítica americana, salvo por raras exceções, falhou diante de Williams: por perplexidade, por arrogância, por ressentimento de um autor para o qual ela era indiferente. Revelador é o juízo de Eliot, que, ainda no início dos anos 1920, esclarecia: “Williams é um poeta ao qual provavelmente se pode conceder alguma importância local.”5 Gertrude Stein não o levou mais a sério. Ele a visitou em Paris. Devia ser por volta de 1924 quando a escritora lhe mostrou manuscritos amontoados em seu apartamento: “Ela me perguntou o que eu faria em seu lugar com todos aqueles livros não publicados… Se eu escrevesse tanto assim, disse, escolheria o melhor e o resto iria para o forno… Meu comentário provocou um silêncio terrível. Mrs. Stein o cortou com as palavras: Compreendo. Parece que escrever não é o seu métier.”
ele é o decano e o patriarca de uma poesia que se libertou da dependência europeia e se disseminou por todo o continente, de Nova York a São Francisco.
Pagaram suas revoluções com a perda de sua identidade americana. Assim foi com T. S. Eliot, que, aos 26 anos fixou-se na Inglaterra e, mais tarde, levando isso às extremas consequências, deu as costas a tudo o que fosse norte-americano: hoje ele se professa monarquista, anglicano e arauto de uma estética classicista. Ezra Pound abandonou o país aos 32 anos, para somente após a Segunda Guerra Mundial retornar (e não por gosto) ao seu local de nascimento. Hoje voltou a viver na Itália. Essas não são meras coincidências entre biografias. Encantados por um conceito de literatura que dificilmente poderia ser pensado como mais europeu, exigentes demais para se satisfazerem com prêmios de consolação e com concessões como centenas de outros vultos mais modestos, Eliot e Pound pagaram com o exílio suas citações de Dante e Catulo.
Pound se engana. Durante o seu tempo de vida, Williams foi um leitor insaciável, embora assistemático e pouco criterioso. Seu conhecimento da literatura abrange dos provençais às antologias clássicas dos chineses. Mas em sua obra isso não aparece. Ao contrário de Pound, ele jamais anuncia suas leituras.
Seu uso da tradição escapa à convenção barata que adora farejar “influências”. Ele não a recupera para continuá-la. Ele a utiliza com o propósito de saltar para o desconhecido. Williams pertence àquela rara espécie dos inventores: os que inauguram um começo e, em vez de serem depositários de legados, fundam-nos.
omente uma personalidade fora do comum está habilitada para isso. Nenhuma “vida cultural”, mesmo a mais refinada e quem dirá a dos Estados Unidos, produz uma nova língua. Talento tampouco basta. O que Williams realizou pressupõe um espírito completamente independente. A autobiografia publicada por ele aos 70 anos de idade dá mostras de uma figura assim, um rarissimum na história da literatura, em plena ação.2 Isso define sua importância, mas a torna ao mesmo tempo sem préstimo para aquela rasteira espionagem comercial que gostaria de explicar a poesia a partir das circunstâncias de vida de quem a fabulou.
“Um poema é uma pequena (ou grande) máquina feita de palavras. Nada em um poema é de natureza sentimental. Com isso quero dizer: tanto quanto uma máquina, ele não pode conter partes supérfluas. Seu movimento é uma manifestação mais física do que literária
Bob (um conhecido de Paris), contou que esteve com Hemingway na Espanha. O trem que os levava parou em uma estação e os passageiros desceram para tomar um pouco de ar fresco. Ao lado da plataforma havia um cão morto. Sua barriga estava inchada e o cadáver se decompunha em todas as cores do arco-íris. Bob queria se afastar do fedor, mas Hemingway ficou por ali, tirou sua caderneta do bolso e começou a fazer descrições minuciosas da carcaça em toda a sua plenitude. Bob se retirou enojado. — Acho que Hemingway está coberto de razão, eu disse.
No prefácio de seu livro de poemas Kora no inferno Williams indica como critério último de qualidade para a escrita a observação exata do visível e sua transformação em um texto que o torne representável.6 Isso conduz a uma singular poesia do próximo, daquilo que está “debaixo do nariz”. “Meu terreno, este quintal dos fundos, sempre foram da maior importância para a minha escrita.” Não foi sem razão que Eliot e Stein, habitantes das grandes capitais, suspeitaram tendências provincianas no médico rural Williams.
Essa maneira de escrever sempre teve como perspectiva tornar evidente sem oferecer à interpretação. Ela evita deliberadamente as “profundezas” e em vez disso apresenta a superfície com a mais intensa pregnância. Daí sua impenetrabilidade, aquela qualidade que Pound denominou opacity.
A maior parte dos trabalhos de Williams são exemplos dessa maneira de apreender por lampejos. Eles lembram uma poesia feita de instantâneos. Com isso, os vários aspectos dos fenômenos parecem se concentrar em um átimo de segundo. Esse olhar por cortes multilateriais, essa espécie de tomografia, foi nomeada “epifania” por Joyce. Williams, que prefere a linguagem cotidiana, usa para isso a palavra glimpses, isto é: revelações rápidas e passageiras, que parecem ter sido flagradas com o canto do olho. Sua metamorfose em poema pressupõe não somente a acuidade da visão, mas também uma extraordinária capacidade mnemônica. Williams dispõe de uma memória para o detalhe que, ora resulta em assombro, ora em calma
Williams nunca se interessou pela “humanidade”: esse vocábulo seria impensável em sua boca. Ele se preocupa mais com as pessoas. O retrato desempenha um grande papel em sua obra. Sua data de nascimento é idêntica à dos poemas-coisa. A técnica do poupar o ajuda, com sua grande vivacidade, a atingir uma virtude que, sem intenção deliberada, se comprova no sentido moral, não apenas no estético. Uma delicadeza que, antes de qualquer coisa, torna possível falar até do mais íntimo. A imagem de sua avó no leito de morte, tão generosa quanto inclemente, é um notável exemplo de arte do retrato.
s terras devastadas e os homens-ocos de Eliot reaparecem — é verdade que mais palpáveis e menos sumários — em muitos textos de William Carlos Williams. Esse tema atinge sua culminação mais impiedosa no poema Completa destruição.
O que as pessoas tentam dizer, o que elas querem sempre, incessantemente e em vão sugerir é o poema que elas procuraram realizar em suas vidas. Nós o temos ali, à nossa frente, como se pudéssemos pegá-lo. Ele está presente a cada instante como uma substância muito sutilmente dispersada, que podemos escutar em tudo o que se diz. A poesia tem sua origem em palavras ditas pela metade, como as que um médico pode escutar todos os dias de seus pacientes enquanto os trata.
O refinamento de seu modo de escrita é ao mesmo tempo camuflado pela aparente cotidianidade desse uso da linguagem. À primeira vista seus poemas parecem até um pouco sem-graça. O grau de adensamento que eles atingem só se revela por uma observação mais concentrada. Cada tentativa de traduzi-lo é uma provação no exemplar. Sua concisão é inatingível em alemão. Nossa poesia, como de resto toda a nossa literatura, é hostil à linguagem familiar. A famosa exceção de Arno Schmidt soa em seu contexto absurda e despropositada; a tentativa de lançar mão da linguagem de todos os dias é mal interpretada como obscuridade.
Fiel à sua máxima de que o mais próximo seria o teste de resistência para toda escrita, Williams domina com graça e sem nenhum esforço aparente os frágeis objetos da existência doméstica, por exemplo nas miniaturas Um adeus amigável e Isto é só para dizer.
Só superficialmente essa figura é uma aparição periférica. Desde Edgar Allan Poe a história das artes na América — salvo quando se entrega às mil formas da propaganda — tem sido uma história de quedas trágicas.
ssim começa o mais famoso poema da mais nova literatura americana: O uivo de Allen Ginsberg.10 Ele nasceu em Paterson. William Carlos Willams escreveu um prefácio para o poema que se encerra com as palavras: “Levantem a barra do vestido, distintas damas, vamos passar pelo inferno.” E, em sua autobiografia, este é o memorial fúnebre dedicado aos amigos mortos e desaparecidos, uma litania de nomes cujas vozes já não se escutam:
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